domingo, 31 de outubro de 2010

A (ÚLTIMA) TRAIÇÃO DOS INTELECTUAIS


Meus amigos

Como a maioria de vocês deve saber, no dia 27.10.2010 (quarta-feira), houve o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do recurso extraordinário do Jader Barbalho – que trouxe a discussão sobre a aplicação da Lei Complementar 135/2010, denominada Lei da Ficha Limpa – no qual o Ministro Gilmar Mendes um voto que merece ser destacado.

A questão é seriíssima – não obstante o Jader Barbalho ser um notório f.d.p. (vide o filme Manda Bala), a justiça deve proteger todos os cidadãos, “mesmo os que pessoalmente não valem grande coisa” (como ressaltou Julien Benda no prefácio à edição de 1946 de A Traição dos Intelectuais – na edição brasileira, da Editora Peixoto Neto, p. 64) – a ele também se aplicam as garantias constitucionais.

Isso me lembrou, na hora, uma passagem do Eric Voegelin (mas que também poderia ser do Gómez Dávila, lembra muito seus escólios), que resume muito bem a situação desse julgamento (e da divergência do Gilmar Mendes): “existem situações intelectuais em que todos estão tão errados que basta estar contra – e manter-se contra – para ter ao menos alguma razão” (Reflexões Autobiográficas, p. 80). No mesmo sentido, o próprio Julien Benda: “A lei do intelectual, quando o universo inteiro ajoelha-se diante do injusto transformado em senhor do mundo, é permanecer de pé e opor-lhe a consciencia humana” (p. 99).

O fato é – tenho a impressão de que, em grande parte (naquilo que não seja por pura tolice) por influência da mídia, as pessoas não entenderam a gravidade da situação – que não se trata de estar contra ou a favor “da lei da ficha limpa”. O próprio Gilmar Mendes não é “contra a ficha limpa”, mas contra a RETROATIVIDADE de uma lei para PUNIR fatos passados – uma garantia de todos nós, inclusive dos que “pessoalmente não valem grande coisa”, para usar as palavras do Benda.

Tenho que o voto do Ministro Gilmar está acertadíssimo do começo ao fim, inclusive no tom enfático, e apresenta algumas passagens lapidares, tais como: As cortes constitucionais e as cortes de justiça existem para controlar o que a maioria, num desatino, faz; e não para aplicar cegamente a lei!

É isso.

Amigos, vejam os vídeos ou leiam a transcrição abaixo e preparem-se. Que Deus nos proteja – a todos nós e, principalmente, “os que não sabem o que fazem”.

http://www.youtube.com/watch?v=ZyQ39EKc6lY

http://www.youtube.com/watch?v=zJVZDHNC2tc&feature=channel

TRECHOS DO VOTO DE GILMAR MENDES:

(...)

A questão é de todos conhecida e foi objeto de intenso debate quando discutimos o caso Roriz [RE 630147].

Mas (...) este caso [RE 631102] ainda é marcado por outras peculiaridades destacadas no voto trazido pelo Ministro Marco Aurélio: denúncia ocorrida em 2001, duas eleições e agora se decide que o agora candidato não é elegível porque uma lei aprovada em junho busca um fato ocorrido em 2001 – nove anos passados – para lhe atribuir efeitos jurídicos.

Essa é a descrição crassa, pura, grotesca, grosseira, dos fatos. E aí se diz: não, mas não se trata de eficácia retroativa; é apenas uma “disciplina” para as próximas eleições.

Presidente, eu fico a pensar, que convite nós estamos fazendo para esse legislador, em termos de criatividade, quando nós lhe damos esta carta branca? Amanhã poderá imaginar fatos quaisquer, alguns nem conexos com atos de criminalidade – ter participado de uma estudantada, ter batido na esposa, ter batido numa criança, sei lá, qualquer desses fatos –, e se diz: “fica inelegível por 20 (vinte) anos”.

Aqui, no caso, nós percebemos inclusive um estratagema, que é o fato de que o legislador conseguiu multiplicar o tempo de inelegibilidade – porque 08 (oito) anos após o término do mandato a que renunciou! O que pode chegar a 16 (dezesseis) anos.

Dificilmente, Presidente, vai se encontrar um caso tão explícito em tempos democráticos de mais inequívoca retroatividade! Dificilmente vai se encontrar um caso de mais escancarada, de mais escarrada – desculpem a expressão – retroatividade.

E mais do que isto! Mais grave do que a lei é o convite que se faz para a irresponsabilidade do legislador, para a manipulação, inclusive, das eleições – porque vai se escolher candidato. No caso do Distrito Federal é evidente (...) o que se tinha em mente era atingir um dado candidato.

Sei lá que tipo de imaginação vai se ter para as próximas eleições, detendo maioria no Congresso, em nome de uma suposta “higidez” moral. E nós devemos ficar advertidos desses acessos de moralismos – em geral eles descambam em abusos, quando eles não são, notória e notavelmente, falsos. Preconiza-se para o outro o que não se faz para si mesmo. É preciso, portanto, que nós estejamos atentos a isso.

Não é o caso (...) não é este caso apenas que está em jogo: é o tema. É o convite que nós estamos fazendo para um Congresso em que a maioria pode asfixiar a minoria.

Se há um exemplo notório de lei casuística é esta alínea k [da Lei Complementar 135/2010]: se fez recortando o corpo do candidato. Para atingir determinado (...). Só isto bastaria para um repúdio claro – o [Supremo] Tribunal não precisaria se manifestar sobre isso, bastaria aplicar o artigo 16 [da Constituição].[i]

É uma situação que enche de constrangimento todos quantos participaram deste processo [RE 631102]. E aí se faz uma coisa enviesada, que eu já tive a oportunidade de repudiar (...). Traz-se para cá a discussão sobre o processo penal.

E aí fica a pergunta – naquele caso anterior eu perguntava ao Procurador-Geral: sim, mas por que até agora não se ofereceu a denúncia se os fatos são tão claros??? – e aqui eu me pergunto por que, sei lá, o processo criminal não se encerrou passados 08 (oito) anos?!?

E aí nós vamos começar a pegar esses atalhos. Daqui a pouco podemos pensar – veja que é livre a imaginação! – um pai que tenha batido num filho, o espancado num tempo (...); agora, ele fica sem pátrio poder de forma definitiva, para sempre. E a gente poderia até aditar: “e será, inclusive, esterilizado para não ter mais filhos”. Tudo isso seria legítimo nesse contexto! É livre a imaginação – é um convite para um salão de horrores! É preciso que nós estejamos atentos a isso.

Por isso – sabedor desse tipo de experiência – é que o constituinte de 88 quis nos poupar. Poupar o Tribunal deste constrangimento. E colocou esta cláusula [art. 16 da Constituição], que é uma cláusula, Presidente, que não trata do direito adquirido. Ela traz uma cláusula específica de segurança jurídica para o processo eleitoral, para evitar essas interveniências indevidas, essa tentação que existe por parte da maioria. E que pode existir também, Presidente, por parte de grupamentos determinados da sociedade.

Eu disse (...) que sequer um milhão, sequer dois milhões, sequer três milhões de assinaturas não impressionavam – a gente sabe como elas são colhidas. A gente sabe que por trás estão organizações partidárias, que se consegue assinatura para isso e para aquilo. Isto é apenas um índice para o processamento de uma ação: isto não retira a lei do modelo de controle de constitucionalidade.

Mas no caso específico – eu volto a repisar, porque é bom que o Tribunal saiba e assuma as suas responsabilidades históricas – no caso específico da renúncia, aproveitou-se a carona de um projeto de lei de iniciativa popular e se fez uma emenda parlamentar. Parlamentar com nome, sobrenome, vinculada ao PT e que tinha interesse determinado em obter a exclusão de um candidato. Lei, portanto, de caráter inequivocamente casuístico.

Não precisaríamos entrar nesse debate, se nós aceitássemos – e eu repassei a jurisprudência deste Tribunal a propósito do art. 16 [da Constituição] – que há agora, Presidente, uma declaração solene nossa naquela ADIn 3685 (...) em que se afirma que o artigo 16 compõe o plexo de cláusulas pétreas.[ii]

Logo, Presidente – Vossa Excelência – veja: nós avançamos para dizer que naquele caso não poderia o Congresso Nacional, por emenda constitucional, alterar o modelo de coligações. Mas agora estamos dizendo, ou podemos dizer, que a escolha de candidatos passa a ser feita por critérios adotados pelo legislador.

Aí se pode invocar a cláusula do § 9º [do art. 14 da Constituição], objeto de tantas distorções, e se dizer que ela própria – a Constituição – previu a possibilidade de que se considerasse a “vida pregressa do candidato”. E logo, assim, ela mandou que se considerassem fatos da vida passada do candidato, e por isso, Presidente, a Constituição autorizaria esse desatino.

Presidente, veja a falácia que está embutida nessa afirmação. O que o texto manda fazer é considerar a experiência jurídica dos povos, e considerar fatos que podem ter ocorrido; mas não mandou aplicar retroativamente, porque isto seria, realmente, mandar violar o texto constitucional!

É aquilo que o Geraldo Ataliba dizia: que a gente nem precisa identificar o fundamento da inconstitucionalidade, porque é aquele tipo de cláusula que viola a Constituição “de Deus a Melo Viana”, dizia Geraldo Ataliba se referindo à Constituição de 1946.

Veja, Vossa Excelência, Presidente: “vida pregressa” significa dizer “que o individuo tenha feito isto”. Mas a lei tem que ser anterior! É a experiência jurídica dos povos que sinaliza, e não mandar aplicar retroativamente lei! É disso que se cuida! Não é aquele cheque em branco para pegar fatos do passado, até porque isso leva a coisas horrendas – absurdas, horripilantes, casuísticas!!! – como nós estamos a ver. Certamente, constrangedoras! Constrangedores, Presidente.

Imagino que o legislador, nesse contexto, poderia buscar uma renúncia ocorrida há cinqüenta anos – não teria nenhum problema. Porque não há limites para o absurdo!

Dizer que isso é “aplicação imediata da lei” é alguma coisa que faz corar frade de pedra, Presidente. É alguma coisa de realmente constrangedor. Mas tudo isto pode ser evitado com a simples aplicação – esta é a inteligência constitucional – do artigo 16. Tão-somente esta aplicação já evitaria uma série desse quadro horrendo de barbáries.

(...) as conseqüências dessa decisão em relação à renúncia faz com que aqui haja um tratamento muito mais gravoso do que a aplicação de uma sentença transitada em julgado com uma pena aplicada por um prazo longuíssimo – doze anos que fossem – de privação de liberdade com a suspensão dos direitos políticos. Aqui, veja, mediante um trick, mediante uma esperteza legislativa conseguiu-se um resultado que se vai para além dos 08 (oito) anos, com o objetivo específico.

Portanto, Presidente, sem a observância do artigo 16, já se revelava in genere absurdo – este caso realmente tem especificidades. (...) o atual estágio do mandato do parlamentar ora impetrante: está ele com os direitos políticos suspensos? (...) com o que se responde a esta pergunta. Mas veja que esta pergunta mostra que a lei não passa em nenhum teste de razoabilidade, porque nós estamos inventando uma nova forma de cassar mandato!

(...) se esse é o intuito e se essa é a interpretação, veja, Vossa Excelência, o resultado abstruso que se produz. Realmente é algo que constrange, é algo que realmente nos leva a pensar sobre uma falha sistemática. E eu nem vou entrar, Presidente, nessa análise naif – desculpe-me – de que: ah, houve um apelo popular – iniciativa popular – e que o Congresso aquiesceu com esse tipo de manifestação e que, por isso, o Judiciário Público pode fazer.

Nem vou perscrutar as razões dos movimentos, mas quem acompanha a cena política, como nós o fazemos já há muitos anos, sabemos bem – muito bem – em que estágio e em que situação o Congresso aprovou esta lei: sob uma pressão enorme, com o temor de ter que enfrentar a renovação dos mandatos no momento seguinte. Tanto é que as próprias emendas de redação eram amplamente discutidas e censuradas!

A formula adotada tinha que ser aceita – apresentada no Congresso, o Congresso tinha que votar – sob pena de estar cometendo um crime de lesa-“majestade”, no caso, o povo.

Em democracia constitucional o povo não é soberano.

Mas há esse tipo de insights para justificar qualquer barbárie. Veja, Presidente, que nós já tivemos situações, já se pretendeu, que penas já aplicadas, de inelegibilidade, de 03 (três) anos, se convolasse em pena de 08 (oito), dizendo-se que isto não era aplicação retroativa!

Isto não faz mal, apenas, às biografias dos partícipes deste processo. Isto faz muito mal, Presidente, é para a democracia constitucional, porque mostra que os controles são extremamente falhos.

Já falei, Presidente, sobre a igualdade de chance. Evidente que este é um princípio, hoje, referendado pela Corte como um princípio constitucional e ela [igualdade] vai restar prejudicada, porque agora passamos a selecionar quem são os adversários a partir deste modelo.

Se disse: ah, mas as condições foram estabelecidas em junho, quando já todos sabiam e os partidos escolheram, assim mesmo, os candidatos. Na discussão passada, nós vimos que o processo eleitoral é muito mais complexo. Não se constrói um candidato de uma hora para outra. A nulificação de um candidato, obviamente, tem efeitos definitórios de uma eleição, Presidente. Não sejamos ingênuos. É disso que se cuida quando se faz lei de teor casuístico. É disso que se cuida quando se afronta a essa idéia – básica – da igualdade.

É fundamental, Presidente, portanto, que nós estejamos atentos a essas conseqüências das decisões que tomamos: nós podemos estar comprometendo o modelo de democracia constitucional, estimulando essas aventuras, a feitura dessas leis de caráter casuístico e oportunistico. É preciso ter muito cuidado.

O Ministro Marco Aurélio já invocou aqui, Presidente, um precedente do Tribunal a propósito da irretroatividade – talvez um dos patrimônios mais caros desta Corte, em que ela pode se colocar no cenário das cortes mundiais, diz respeito exatamente ao controle da aplicação da lei retroativa, a partir da riquíssima jurisprudência do Tribunal sobre ato jurídico perfeito, direito adquirido e a coisa julgada.

E nós todos já rememoramos as lições do nosso mestre Moreira Alves a propósito desse tema. Veja que o Tribunal não cedeu às conveniências, de ordem econômica e financeira, em relação a planos econômicos – toda vez que havia a intervenção em contratos – e a pressão era enorme e a racionalidade dos apelos era imensa. O Tribunal não cedeu a esses apelos e a esse tipo de pressão quando lidou com esses diplomas que eram, muitas vezes, intervencionistas nas relações contratuais.

É, ainda hoje, multiplamente citada a lição constante no voto do Ministro Moreira Alves[iii] citando José Carlos de Matos Peixoto (...) no Curso de Direito Romano:[iv] normalmente as leis dispõem para o futuro, não olham para o passado. Em conseqüência, atos anteriores à vigência da lei nova, regulam-se, não por ela, mas pela lei do tempo em que foram praticados – tempus regit actum. Entretanto, algumas leis afastam-se, excepcionalmente, dessa regra e retrocedem no tempo, alcançando fatos pretéritos ou os seus efeitos. Tais leis chamam-se retroativas.

Mas a força retroativa da lei não tem sempre a mesma intensidade. Desse ponto de vista, distinguem-se, em direito civil – dizia Matos Peixoto citado por Moreira Alves – três graus de retroatividade: máxima, média e mínima (...). Dá-se retroatividade máxima, também chamada restitutória quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados. Estão nesse caso, por exemplo, a lei canônica que aboliu a usura e obrigava o credor solvável a restituir ao devedor, aos seus herdeiros ou, na falta destes, aos pobres, os juros já recebidos. (...) A retroatividade é média quando a lei nova atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes da sua vigência. Exemplo: uma lei que diminuísse a taxa de juros e se aplicasse aos já vencidos, mas não pagos. Enfim, a retroatividade é mínima, também chamada temperada ou mitigada, quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores verificados após a data em que ela entra em vigor. (...)

Presidente; são tantos os magistérios a propósito dessa questão que ela é pacífica entre nós. O artigo 16, nesse sentido, é uma norma especial de reforço, tendo em vista a nossa experiência constitucional, a experiência do nosso constitucionalismo em relação aos abusos tradicionais. Há tentação majoritária de interferir no processo eleitoral – por isso o artigo 16 como norma essencial nesse quadro magno de segurança jurídica. É isto que precisa ser ressaltado, Presidente. E é isto que precisa ser observado: o artigo 16 seria suficiente para encerrar essa controvérsia. Porque não há dúvida que nós estamos tratando, sim, de processo eleitoral.

Eu fico a imaginar que, agora, o legislador será convidado (...) daqui a pouco não será mais suficiente a condenação em segundo grau. Aí bastará a condenação em primeiro grau. Depois vai ocorrer um outro sentimento de necessidade de “depuração” do ambiente político. E é bom ver, Presidente, que esse tipo de mensagem começa a namorar com pensamentos autoritários, quando se começa a tentar tutelar a sociedade e o próprio eleitor nós já temos um namoro com pensamentos que gravitam em torno do nazi-facismo. Aí a gente pode pensar: ah, quem sabe apenas a denúncia recebida. O governo militar teve esse ímpeto (...).[v]

Veja, Vossa Excelência, a que tipo de retrocesso e de sandice nós podemos estar submetidos. O regresso a uma lei odienta e hedionda, foi proposta nessa iniciativa popular. Veja que tipo de sandice se pode propor ao Congresso Nacional em nome de iniciativa popular! Em nome dessa chamada “higidez” moral!

Mas aí se pode, também, fazer seleção nesta seqüência de absurdos. Se pode imaginar, por exemplo, a denúncia por determinados crimes, para selecionar quem deve ser o adversário da maioria nas eleições!!! Como ocorreu neste caso específico!!! É bom que se saiba que, aqui, se teve este desígnio!!! Lei casuística para ganhar eleição no tapetão!!! Esse tipo de covardia que faz a maioria contra a minoria!!! Isso não tem nada que ver com princípio da moralidade!!! Ela, em si mesma, é uma imoralidade!!! É disso que nós estamos a falar!!!

E é preciso que nós assumamos as conseqüências dos nossos atos!

Mas, vamos prosseguir no teatro dos absurdos. Vamos, agora, imaginar que já não é bastante a denúncia recebida. Inquérito. Inquérito determinado. Inquérito com determinados tipos processuais. Também pode impedir. Porque não há limite. É “vida pregressa”, segundo esse critério. Ocorreu no passado. Não há freios para isto!!!

Qual o limite que se está estabelecendo? E aí se responde, num positivismo odiento também: estamos aplicando a lei que o Congresso aprovou.

Ora bolas! As cortes constitucionais e as cortes de justiça existem para controlar o que a maioria, num desatino, faz; e não para aplicar cegamente a lei!

É evidente que este argumento da “vida pregressa” serve para uma série de expedientes subservientes. (...) E há uma mescla no caso da renúncia. Porque, quando se discute a renúncia, vêm com um argumento de que: ah, mas havia, subjacente, fatos criminais. Aí passam-se os anos e o processo não se conclui.

No outro caso (...): ah, há um inquérito. Mas, e aí? Quatro anos não foram suficientes para o Ministério Público oferecer a denúncia? (...)

Processo político, por definição, é um processo dialético, as pessoas estão em confrontação. E como que o adversário age contra o outro? Ele age contra o outro fazendo acusações. Hoje ele faz, também, denúncias ao Ministério Público. Naturalmente. Isso faz parte do processo! Aí tem lá, amanhã, um inquérito civil (...) na Câmara dos Vereadores, [o adversário] se dirige ao promotor. O promotor instaura o inquérito civil, daqui a pouco convola numa investigação criminal ou numa denúncia. E assim por diante. E aí nós começamos a valorar esses fatos retroativamente.

Presidente, veja, Vossa Excelência, portanto, que, de fato, em termos de aplicação nós podemos, realmente, estar vivendo um quadro de teatro dos absurdos. E este caso serviu para mostrar bem. Porque, se estamos diante de um caso específico em que não há direitos políticos suspensos, veja o que diz o artigo 15 [da Constituição] (...).[vi]

Agora, nós temos que aprovar mais uma cláusula [no art. 15 da Constituição]: quando o Congresso aprovar uma lei de inelegibilidade e a Justiça Eleitoral decidir aplicá-la a um candidato que tenha mandato. Também haverá cassação do mandato político. Porque senão nós não vamos ser coerentes. Porque teremos alguém que não tem direitos políticos exercendo mandato.

Só esta pergunta já constrange um aluno do primeiro ano de Direito: como é aceitar essa premissa e não cassar o mandato?

Presidente, estamos, realmente, vivendo dias singulares, heterodoxos, em termos de direito. Sem dúvida nenhuma, chancelar a aplicação da lei, neste caso, nove anos, oito anos decorridos, é, com as vênias de estilo, a barbárie da barbárie.

Eu tenho outras preocupações. Alguém poderá dizer: ah, por que está tão preocupado com as leis, se nós temos os tribunais para evitar os seus excessos, os excessos de sua aplicação? Nós estamos a ver que não é assim que, infelizmente, as coisas ocorrem, Presidente.

Mas eu temo, também, Presidente, inclusive pelo poder dos tribunais na aplicação desse tipo de lei. É melhor que eles não tenham o poder de aplicar esse tipo de lei, porque isso gera distorções muito sérias como a experiência histórica recente está a assinalar.

(...)

Eu me lembro (...) de um seminário realizado pelo TRE do Rio de Janeiro sobre esta questão, antes, portanto, desta lei – à aplicação deste ideário da ficha limpa. E havia, então, os mais diversos teóricos sobre este tema. O grande defensor da aplicação da ficha limpa era o desembargador Roberto Wider. (...) Presidente do TRE, gozava de uma enorme distinção. Cheguei a perguntar aos juízes, alguns jovens juízes, que integravam a sua grei, como eles identificavam um candidato com ficha limpa, de outro, sem os critérios. Eles pareciam que percebiam pelo DNA, buscavam pelo jeitão.

Eu até compreendi, à falta de outros critérios jurídicos, que aquilo era uma tentativa desesperada, Presidente, de dar uma resposta à população do Rio de Janeiro, em relação à criminalidade na política. Mas manifestei, publicamente, a minha desconfiança em relação a tudo aquilo que eu via!! Porque esse tipo de poder subjetivo a gente não deve querer – nem para si mesmo!

Isso faz parte da democracia crítica. Criar critérios gerais!!! O melhor é que a Justiça Eleitoral intervenha menos no processo – e não mais!!!

Quase que, por constrangimento, eu não contava o final dessa história, Presidente. Mas vou contar, para que (...) onde isso foi parar. Matéria do Globo,[vii] deste ano, sobre estas várias questões, vem e diz: “Enquanto o desembargador ocupava a presidência do TRE-RJ, em campanha contra os chamados candidatos de ficha suja, nas eleições de 2008, Raschkovsky” – um advogado, lobista – “atuou nos bastidores para oferecer blindagem aos políticos mais problemáticos. Um ano após as eleições, cinco deles e um advogado de candidato contaram, em caráter reservado, que o lobista pediu quantias variando de R$ 200 mil a R$ 10 milhões para limpar as fichas, livrando-os do risco de impugnação ou cassação do diploma”.

Presidente, nem o Judiciário deve desejar ter esse tipo de poder e fazer esse tipo de juízo, porque isto vai se prestar a artificialismo desta sorte.

Veja, Vossa Excelência, Presidente, que não se trata, portanto, de ser a favor, ou não, da lei da ficha limpa; trata-se, apenas, de buscar uma aplicação adequada e de fazer as correções devidas.

Outro episódio (...) ressalta a distorção, a não mais poder, desta lei – o seu caráter casuístico. Quem renunciou numa CPI não está inelegível; mas (...) quem renunciou, com uma representação, numa Comissão de Ética, está. Por quê? Porque a lei diz assim – e não nos cabe perscrutar quais são as razões “soberanas” do legislador.

Não há legislador soberano no Estado Constitucional.

E é este o problema: o tipo de poder, Presidente, que se está dando ao Congresso Nacional ou a grupamentos de pressão. Porque, se nós, que temos diálogo com muitos parlamentares, conversarmos com os parlamentares, saberemos que, muito provavelmente, num quadro de normalidade, num ambiente pós-eleitoral, muito provavelmente, o Congresso faria uma outra lei, com as devidas cautelas. É preciso, portanto, Presidente, ter muito cuidado com todos esses “ismos”.

A própria aplicação do princípio da moralidade, pelo Judiciário, precisa de ter respaldo em norma específica, sob pena de cair num subjetivismo e, por isso, em arbitrariedade. E, não às vezes, motivada por razões escusas, abjetas; mas que seja apenas por uma vontade de punir, por um acerto de contas político – já será suscetível de repúdio.

Por isso, Presidente, por razões que eu já expendi aqui, longamente, no meu voto, proferido no Mandado de Segurança sobre o mesmo tema; considerando que esta lei apanha fato anterior – e, neste caso, como nós estamos vendo, muito anterior! – e veja, como nós não estamos julgando apenas o caso, mas nós estamos julgando a tese, é fundamental, nós vamos estar assentando que não há limites ao legislador – poderá apanhar fato de cem anos!

Como eu disse, isto é digno do mais veemente repúdio. Mais veemente repúdio do ponto de vista constitucional. Mais veemente repúdio do ponto de vista hermenêutico! Mais veemente repúdio do ponto de vista político! (...) esta Corte, Presidente, repudiou, claramente, este apanhar fato passado para atribuir-lhe conseqüência jurídica! (...) E lá[viii] nós estávamos a falar de conseqüências, talvez, até menores em relação à repercussão para o direito subjetivo do que ocorre aqui. (...)

Nós estamos a falar da organização dos partidos políticos e de sua representação. (...) isso ficou muito claro nos votos vencedores de então. Veja, por exemplo, já o voto vencedor do Ministro Marco Aurélio. (...) Vossa Excelência falava, exatamente, sobre a função desta Corte na defesa das minorias. (...)

E na mesma linha, então, o Ministro Sidney Sanches: (...) Presidente, chamo atenção para essa passagem do voto (...): “O que me chocou, porém, foi o argumento, que não consigo superar, no sentido de que a lei está partindo de fatos, já ocorridos, para regular o futuro. Assim, no dia 30 de setembro de 1993, quando entrou em vigor a lei, já se sabia quais os partidos que não poderiam concorrer, quais os que ficariam por ela automaticamente excluídos”.

(...)

“Considerei esse argumento irrespondível, tanto mais porque, durante o debate, não o vi devidamente rebatido. Lamento ter de tomar essa posição, porque na verdade sou simpático à causa da limitação da atuação dos partidos políticos, para que não se chegue ao caos e aos notórios abusos da pratica partidária e eleitoral, no Brasil, mas não vejo, nesta lei, a solução correta para o problema. A lei não é razoável, quando leva em conta o passado dizendo quais os partidos que não podem concorrer. Isso, de certa forma, é um casuísmo”. (...) “Estaria disposto, com muito prazer, a acompanhar as posições dos Srs. Ministros FRANCISCO REZEK, CARLOS VELLOSO e SEPÚLVEDA PERTENCE, fossem outros os critérios da lei, se voltada, apenas, para o futuro”.

(...) com palavras idênticas o Ministro Néri da Silveira a apontar o casuísmo da legislação de então e a sua incompatibilidade, por isso, com a Constituição – a adoção de critério existente no passado para vincular o futuro.

Mas, (...) o enquadramento em termos de dogmática constitucional se deu com a observação do voto curtíssimo do Ministro Moreira Alves, que mostrou, Presidente, que a questão se punha – de novo, volto a repetir – apanhar fatos passados para atribuir-lhe efeitos no processo eleitoral. (...)

“Ora, os dispositivos em causa partem de fatos passados, e portanto já conhecidos do legislador quando da elaboração desta lei, para criar impedimentos futuros em relação a eles” – parece que estavam falando para hoje, Presidente, para este caso, para nos constranger e constranger a todos que entendem que esta lei pode ser aplicada – “os dispositivos em causa partem de fatos passados, e portanto já conhecidos do legislador quando da elaboração desta lei, para criar impedimentos futuros em relação a eles, constituindo-se, assim, em verdadeiros preceitos ad hoc, por terem como destinatários não a generalidade dos partidos, mas apenas aqueles relacionados com esses fatos passados, e, por isso, lhes cerceiam a liberdade por esse procedimento legal que é de todo desarrazoado”.

(...) a Corte, Presidente, já enfrentou esse tipo de questão, especialmente na seara político-partidária, para dizer não a esse tipo de aplicação. E, no caso especifico, nós estamos a ver, não se trata de uma aplicação para um fato ocorrido na imediatidade da aplicação da lei. Não, nós estamos a falar de algo que se deu há quase dez anos. E, sem nenhum outro critério, nós não temos limite – o legislador poderá apanhar fatos de vinte e de trinta anos.

(...)

E, sobretudo, um sobressalto para o futuro, porque quem detiver a maioria poderá definir critérios para cassar mandatos, Presidente!!! Nós não estamos falando, apenas, de inelegibilidade. Porque, quando se estabelece este tipo de critério se está introduzindo uma nova cláusula de cassação de mandatos. Não estabelecer que a lei se aplica para o futuro gera esses absurdos constrangedores.

(...) neste caso, o absurdo é tão gritante que salta aos olhos e reclama um posicionamento, não apenas para o caso, mas para – um posicionamento histórico dessa Corte – para que nós saibamos, no futuro, quais são as nossas responsabilidades!!! Que portas nós estamos abrindo para abusos, para eventuais autocracias, para eventuais namoros e flertes, inclusive, com propostas autoritárias e totalitárias!

O Ministro Celso lembrava que a proposta de iniciativa popular resgatava um odioso dispositivo da ditadura – inelegibilidade com denúncia recebida. Portanto, nós não estamos muito distantes, daqui a pouco, de uma notitia criminis ser causa de inelegibilidade, sobre um determinado crime, para pegar um determinado candidato – a governador ou a senador – num Estado determinado!!!

É esse o constrangimento que nós temos de assumir perante o país!!! É essa a responsabilidade histórica que cai sobre o Supremo Tribunal Federal!!! Em nome de um moralismo, chancelar fórmulas que podem flertar com o nazi-facismo!!!

É preciso ter muito cuidado, Presidente; é por isso que eu me estendi. Porque não se trata de estar julgando este caso. Nós podemos estar abrindo as portas para abusos ilimitados!!!

Que é uma lei casuística, já não se precisa falar!!! Foi lei feita para resolver eleição no Distrito Federal!!!!! E atingiu, de resguardo, alguns candidatos que, inclusive, eram da base de governo!!! Não constava, inclusive, da iniciativa popular!!! Bastaria isto para termos um constrangimento histórico!!!

Mas, nós podemos estar abrindo cancelas para abusos notórios nesta área!!! Passarmos a selecionar adversários, a partir do critério de inelegibilidade!!!

Presidente, por todas essas razões e com toda essa ênfase, eu provejo o recurso!!!

NOTAS:


[i] A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

[ii] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16) E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, CAPUT, E LIV). LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF. 1. Preliminar quanto à deficiência na fundamentação do pedido formulado afastada, tendo em vista a sucinta porém suficiente demonstração da tese de violação constitucional na inicial deduzida em juízo. 2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal. 3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93). 4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e "a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral" (ADI 3.345, rel. Min. Celso de Mello). 5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). 6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral. 7. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência. (ADI 3685, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 22/03/2006, DJ 10-08-2006 PP-00019 EMENT VOL-02241-02 PP-00193 RTJ VOL-00199-03 PP-00957)

[iii] ADI 493, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 25/06/1992, DJ 04-09-1992 PP-14089 EMENT VOL-01674-02 PP-00260 RTJ VOL-00143-03 PP-00724.

[iv] "Limite temporal da Lei", artigo de Matos Peixoto, publicado na Revista Jurídica da antiga Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (v. IX, p. 9 a 47).

[v] Art. 1º, I, n, da Lei Complementar 5, de 29 de abril de 1970.

[vi] Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

[vii] Série de reportagens do GLOBO mostrou envolvimento de lobista com Wider. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/01/26/serie-de-reportagens-do-globo-mostrou-envolvimento-de-lobista-com-wider-915715373.asp

[viii] ADI 958, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 11/05/1994, DJ 25-08-1995 PP-26021 EMENT VOL-01797-01 PP-00077; ADI 966, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 11/05/1994, DJ 25-08-1995 PP-26021 EMENT VOL-01797-01 PP-00124.

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