MIRCEA ELIADE

As categorias do sagrado, assim como a sua morfologia, excedem constantemente as epifanias do mana e do insólito, da mesma maneira que extravasam do culto dos antepassados, da crença nos espíritos, dos cultos naturalistas, etc. Por outras palavras, uma religião, ainda que se trate da religião mais "primitiva" (por exemplo, a religião de uma tribo australiana, dos judamaneses, dos pigmeus, etc.), não se deixa reduzir a um nível elementar de hierofanias (o mana, o totemismo, o animismo). Ao lado de tais experiências e teorias religiosas monovalentes, encontramos constantemente os vestígios mais ou menos ricos de outras experiências ou teorias religiosas; por exemplo, os vestígios do culto de um ser supremo. O fato de esses vestígios apresentarem pouca importância para a vida religiosa cotidiana da tribo não interessa aqui. Teremos oportunidade de verificar que, entre os primitivos, a crença num ser supremo, criador e todo-poderoso, que permanece nos Céus e se manifesta por epifanias uranianas, aparece um pouco por toda a parte; no entanto, este ser supremo não desempenha quase nenhum papel no culto, onde é substituído por outras forças religiosas (o totemismo, o culto dos antepassados, as mitologias solares e lunares, as epifanias da fertilidade). O desaparecimento de tais seres supremos da atualidade religiosa representa evidentemente um problema de história, e deve-se a certas forças que podem ser parcialmente identificadas. Mas, ainda que aí surjam com menos importância, os seres supremos pertencem ao patrimônio religioso dos "primitivos" e, por conseqüência, não podem ser desprezados quando estudamos a experiência global do sagrado entre a humanidade arcaica. As hierofanias elementares e as cratofanias fulgurantes incluem-se no conjunto dessa experiência religiosa arcaica, dominando-a por vezes, mas sem nunca a esgotar. (ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Tradução de Fernando Tomaz e Natália Nunes. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 29-30)