sábado, 15 de agosto de 2009

A MAIOR FOME DA HISTÓRIA (1959-1961)


No Ocidente, correu durante muito tempo um mito tenaz: sim, a China não é modelo de democracia, mas "pelo menos Mao conseguiu dar uma tigela de arroz a cada chinês". Infelizmente, nada é mais falso: por um lado, e como vamos ver, as modestas disponibilidades por habitante não aumentaram provavelmente de forma significativa entre o início e o fim do seu reinado, e isto a despeito de esforços como raramente foram impostos a um campesinato no decurso da história; por outro lado, e sobretudo, Mao e o sistema que ele criou foram directamente responsáveis por aquela que continuará a ser (assim esperamos...) a mais mortífera fome de todos os tempos, em todos os países, em valor absoluto.

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O facto de a fome ter sido de natureza política está demonstrado pela concentração de uma grande parte da mortalidade nas províncias governadas por maoístas radicais, apesar de em tempos normais serem exportadoras de alimentos (...) Os activistas do Henan estão convencidos, como Mao, de que todas as dificuldades são provocadas pelo facto de os camponeses esconderem os cereais (...) É contra o conjunto dos rurais (a "hierarquia de classes" está de momento esquecida) que, no Outono de 1959, é lançada uma ofensiva de estilo militar, para a qual os responsáveis recuperam os métodos da guerrilha antijaponesa. Pelo menos dez mil camponeses são aprisionados, e muitos morrerão de fome. É dada a ordem para partir todos os utensílios de cozinha dos particulares (os que não foram utilizados em aço inutilizável), a fim de impedir qualquer espécie de auto-alimentação e de tirar-lhes a vontade de rapinar os bens das comunidades. É inclusivamente proibido fazer lume, numa altura em que o rude Inverno se aproxima! As derrapagens da repressão são terríveis: tortura sistemática de milhares de detidos, crianças mortas, cozidas e em seguida utilizadas como adubo - isto enquanto uma campanha nacional incita a "aprender com o Henan". No Anhui, onde se proclama a intenção de "conservar a bandeira vermelha mesmo com 99% de mortos", os quadros voltam às boas e velhas tradições de enterrar as pessoas vivas e torturá-las com ferros em brasa. Os funerais são proibidos: receia-se que o seu número assuste os sobreviventes e se transformem em manifestações de protesto. É proibido recolher as inúmeras crianças abandonadas: "Quantas mais forem recolhidas, mais serão abandonadas." Os aldeãos desesperados que tentam chegar às cidades são recebidos a tiro. (...)

No momento em que Gagarine se lança para o espaço, e num país dotado de mais de trinta mil quilómetros de caminhos-de-ferro, onde existe o telefone e a rádio, encontramos devastações próprias das grandes crises de subsistências do Antigo Regime europeu, mas que atingem uma população igual à do mundo inteiro no século XVIII: milhões de famintos que tentam alimentar-se cozendo ervas, casca de árvore e folhas de choupo, errando pelas estradas em busca de qualquer coisa para comer, tentando atacar os comboios de víveres, lançando-se por vezes em motins provocados pelo desespero (distritos de Xinyang e de Lan Kao no Henan) - não lhes serão enviados quaisquer alimentos, mas por vezes mandar-se-á fuzilar os quadros locais "responsáveis"; uma maior sensibilidade às doenças e às infecções, o que multiplica a mortalidade; uma quase-paragem da capacidade das mulheres esgotadas de conceberem e parirem filhos. Os detidos do laogai não são os últimos a morrer de fome, embora a sua situação não seja necessariamente mais precária do que a dos camponeses vizinhos, que vão por vezes às portas do campo mendigar um pouco de comida: três quartos dos membros da brigada de trabalho de Jean Pasqualini em Agosto de 1960 estavam, um ano depois, mortos ou moribundos, e os sobreviventes tinham sido reduzidos a procurar grãos de milho não digeridos nos excrementos dos cavalos, e vermes na bosta das vacas. Servem igualmente de cobaias para a experimentação de sucedâneos de fome, como a mistura de farinha com 30% de pasta de papel na confecção do pão, ou de plâncton dos pântanos, com caldo de arroz; o primeiro provoca no campo inteiro uma vaga de terríveis obstipações, de que muitos morrem; o segundo causa igualmente doenças, a que os mais fracos não resistem. Finalmente, fica-se pelo sabugo de milho moído, que se espalhará pelo país inteiro.
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A recordação do Grande Salto em Anhui, ou como Wei Jingsheng rompeu com o maoísmo (Em 1968, Wei, com dezoito anos de idade, guarda vermelho agora perseguido pelas autoridades, como milhões de outros, esconde-se junto da família, numa aldeia de Anhui, província particularmente castigada pelo Grande Salto em Frente)

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Passávamos justamente ao lado da aldeia. Os raios brilhantes do sol iluminavam as ervas daninhas, de um verde de jade, que cresciam entre as paredes de terra, sublinhando assim o contraste com os bem cuidados campos de arroz à volta e aumentando a desolação da paisagem. Diante dos meus olhos, entre as ervas daninhas, surgiu subitamente uma cena que me tinha sido descrita durante um banquete (sic): a de famílias trocando os filhos entre si para os comerem. Distinguia claramente os rostos consternados dos pais que mastigavam a carne das crianças pelas quais tinham trocado as deles. Os garotos que perseguiam as borboletas nos campos situados à volta da aldeia pareciam-me ser a reincarnação das crianças devoradas pelos pais. Faziam-me pena. Mas os pais faziam-me ainda mais pena. Quem os tinha obrigado a engolir, no meio das lágrimas e da dor de outros pais, aquela carne humana que nunca, nem nos seus piores pesadelos, teriam pensado em provar? Compreendi então quem era aquele carrasco, "um carrasco tal que a humanidade, em vários séculos, e a China, em vários milênios, tinham produzido apenas um": Mao Zedong. Mao Zedong e seus sectários que, com o seu sistema e a sua política criminosos, tinham levado pais enlouquecidos pela fome a entregar a outros a carne da sua carne para que matassem a fome, e a receber a carne da carne de outros pais para matar a deles. Mao Zedong que, para lavar o crime que cometera ao assassinar a democracia, tinha lançado o "Grande Salto em Frente" e obrigado milhares e milhares de camponeses estupidificados pela fome a matarem a golpes de sachola os seus antigos companheiros e a salvar assim a própria vida graças à carne e ao sangue dos amigos de infância. Não, os carrascos não eram eles, os carrascos eram Mao Zedong e os seus sicários. Finalmente, compreendia onde Peng Dehuai fora buscar a força para atacar o Comité Central do Partido dirigido por Mao Zedong; finalmente, compreendia por que razão os camponeses detestavam tanto o "comunismo" e por que motivo não tinham admitido que se atacasse a política das "três liberdades e uma garantia" de Liu Shaoqi. Pela simples e boa razão de que não queriam no futuro ter de dar a mastigar a outros a carne da sua carne nem abater os companheiros para os comerem num acesso de loucura, por instinto de sobrevivência. Esta razão pesava muito mais decisivamente do que qualquer ideologia.

(COURTOIS, Stéphane [et al]. O livro negro do comunismo: crimes terror e repressão. Tradução de Maria da Graça Rego e Lila V. 4ª ed. Lisboa: Quetzal, 1999, pp. 552-561)

Versão para download do livro completo (em espanhol):
http://www.4shared.com/file/38385217/e95b7220/El_Libro_Negro_Del_Comunismo__Completo__845_Pginas_Censurado_En_Espaa_Divlgalo.html?s=1

em inglês: http://www.scribd.com/doc/3398379/Black-Book-of-Communism

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