sábado, 15 de agosto de 2009

PALHA


Regressara ele vitorioso do seu último combate com Siger de Brabante; regressou e recolheu à solidão. Esta polémica particular foi o único ponto, podemos dizer, em que a sua vida exterior e a interior se cruzaram e coincidiram. Lembrava-se de como desejara ardentemente, desde a infâcia, reunir todos os aliados na batalha por Cristo; de como, só muito tempo depois, alcançara para aliado a Aristóteles; e agora, nesse último pesadelo do sofisma, verificava pela primeira vez que alguns queriam, na realidade, que Cristo se curvasse ante Aristóteles. Nunca mais se curou do profundo abalo. Ganhou a sua batalha por ser o cérebro mais forte do seu tempo, mas não pôde esquecer uma tal inversão de todo o ideal e fim da sua vida. Era desses homens que detesta ter ódio a alguém. Não estava habituado a odiar nem mesmo as ideias odiosas dos outros, além de certo ponto. Mas nos abismos da anarquia abertos pela sofística de Siger, acerca do duplo espírito do homem, vira a possibilidade da morte de toda a ideia de religião e até de toda a ideia de verdade. Breves e fragmentárias como são as frases que o recordam, podemos concluir que regressou com uma espécie de horror daquele mundo exterior em que sopravam tão fortes ventos de doutrina, e ansiando pelo mundo interior que qualquer católico pode possuir e no qual o santo não está separado dos homens simples. Reatou a vida regular da estrita religião, e, durante algum tempo, nada disse a ninguém. E depois aconteceu qualquer coisa (diz-se que quando celebrava a missa) cuja natureza jamais será conhecida dos homens mortais.

Seu amigo Reginaldo pediu-lhe que voltasse também aos seus hábitos, igualmente regulares, de ler e escrever, e de seguir as controvérsias do momento, mas ele respondeu com estranho calor:

- Não posso escrever mais.

Parece ter havido um silêncio, após o qual Reginaldo se atreveu a voltar novamente ao assunto, e Tomás respondeu-lhe ainda com mais vigor:

- Já não posso escrever mais. Vi coisas, ao lado das quais tudo o que escrevi é palha.

(CHESTERTON, G. K. S. Tomás de Aquino. Tradução e notas de Antônio Álvaro Dória. Braga: Cruz, 1957, pp. 190-191)

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