
Já que estou falando nos vários óbvios da nossa época, queria dizer duas palavras sobre Mao Tsé-tung. É possível que, ao sair esta Confissão, sua morte já esteja oficialmente reconhecida. No socialismo totalitário é muito possível que a simples e secundária morte física não coincida com a morte oficial. Às vezes o ditador está morto, com algodão nas narinas, e continua baixando decretos e, numa palavra, exercendo o poder em toda a sua plenitude. Quem nos garante que Stalin não morreu muito antes? No socialismo só acontece e só se sabe o que o Estado quer. Para oitocentos milhões de chineses, os americanos ainda não desceram na Lua.
(...)
Mas vejamos Mao Tsé-tung e o óbvio. De vez em quando o Jornal Nacional diz que, segundo afirma o Estado Chinês, Mao não só não morreu como vai muito bem de saúde. Portanto, temos um defunto salubérrimo. Mas não é isso que eu queria dizer. Eu ia dizer que o ditador chinês foi um Stalin. Tão feroz, tão desumano, tão contra-revolucionário (sic) como o assassino russo.
São parecidos até nos problemas de saúde. Certa vez, andaram circulando na imprensa ocidental, notícias, segundo as quais, Stalin estaria doente. Encontrei na rua um comuna. Fiz o comentário: - "O velho está mal, hein?" O outro, que estava acompanhado da mulher, deu urros de indignação. O casal achava que Stalin não ficava doente, nem velho, e estava acima da morte, do tempo, de tudo. No meu espanto, perguntei: - "Mas vocês acham que Stalin não tem resfriado, não se constipa?" Os dois, enjoados do meu reacionarismo, confirmaram: - "Exatamente." Portanto, não admira, repito, que Mao Tsé-tung governe depois de morto. Mas essa eternidade não o impede de ser um dos maiores criminosos de todos os tempos. Hoje, Nero não passa de um afetuoso nome de cachorro. "Incendiou Roma", dirão. Mas tal incêndio fez um número de vítimas pouco maior do que, aqui, um desastre de ônibus.
E, no entanto, quando se tratou da admissão da China Vermelha, houve passeatas medonhas nos Estados Unidos. As Bochechas de Mao Tsé-tung estavam em todos os cartazes. No Rio, dizia-me um jovem cineasta: - "O maior homem do mundo." Pensemos, então, no que a China teve que pagar, em vidas humanas, ao velho tirano. Quem o diz não sou eu, mas o Time e, como o Time, uma comissão de senadores americanos, incumbida de apurar o custo humano da experiência socialista na China.
Passo a palavra aos números. Eis a estimativa feita (Os senadores e Time advertem que são cálculos feitos muito por baixo.) Vejamos: - Três milhões e quatrocentos mil mortos. Digo mortos, porque não estão incluídos os feridos, os mutilados, etc., etc. Alguns milhões de proprietários de terras, durante o período de 1942 a 1949. O chamado Grande Pulo Para Frente, ou seja, a Revolução Cultural, custou a vida de quinhentos mil chineses. Um milhão para suprimir a minoridade do Tibete. Vinte e cinco milhões em campos de trabalhos forçados. Trinta milhões, em expurgos políticos, na campanha de 49 para 58. Total da estimativa, repito, que exclui feridos mutilados, desaparecidos: - 63.784.000 chineses.
Alguém poderá objetar: - "Mas quem diz isso são os Estados Unidos." Por isso mesmo, trata-se de uma estimativa da maior benignidade. Nós sabemos que os Estados Unidos só exageram quando se trata dos próprios defeitos. São, em tal caso, implacáveis. Mas se é a Rússia ou a China, os jornais de lá, as agências telegráficas fazem a mais furiosa e deslavada promoção do inimigo.
E, além disso, convém notar que o próprio Mao Tsé-tung declarou que, para fazer a reforma agrária, matou apenas oitocentos mil chineses. Convém notar que a lúgubre estatística acima só leva em conta as execuções em massa. Vamos admitir que é algo inédito na História Universal: - 63.784.000 defuntos.
Aí está o óbvio ululante. Mao Tsé-tung matou como ninguém, mais do que o próprio Stalin. Hitler assassinou muito menos. Dirá algum socialista: - "Num país de oitocentos milhões de habitantes, o que são os sententa milhões que o velho Mao executou?" Cabe então a pergunta: - e não se vê o óbvio?
Exatamente: - não se vê. Lá, na China, está ele, o assassino. É o óbvio, com bochechas de máscara e barriga insubmersível. Houve um momento em que o Dr. Alceu, num lampejo de lucidez, esbravejou contra o estupro de freiras, na China Vermelha. O mestre chegou a dizer: - "É de fremir." Não só fremiu, como ainda lhe acrescentou um ponto de exclamação, com reticências. Na ocasião, imaginei: - "Até que enfim, o Dr. Alceu, que não enxerga óbvio nenhum, viu este." Ilusão minha, porque, em seguida, o mestre descobriu a marcha irreversível para o Socialismo. É como se ele dissesse: - "Marcha irreversível para a matança de mais de sessenta e tal milhões de chineses, marcha irreversível para o estupro de novas freiras", etc., etc.
E a Revolução Cultural é tão analfabeta que não sabe nem que o homem já desceu na Lua. O curioso é que Nixon foi ver Mao Tsé-tung. Será que o apresentaram a um defunto? Eis, então, o nosso Nixon a decidir, com um cadáver, a sorte do mundo. Na saída, talvez tenha perguntado: - "Mas por que é que ele usa algodão nas narinas?"
Publicado em O Globo, 8/11/1972.
(RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2008, pp. 140-142)
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Mas vejamos Mao Tsé-tung e o óbvio. De vez em quando o Jornal Nacional diz que, segundo afirma o Estado Chinês, Mao não só não morreu como vai muito bem de saúde. Portanto, temos um defunto salubérrimo. Mas não é isso que eu queria dizer. Eu ia dizer que o ditador chinês foi um Stalin. Tão feroz, tão desumano, tão contra-revolucionário (sic) como o assassino russo.
São parecidos até nos problemas de saúde. Certa vez, andaram circulando na imprensa ocidental, notícias, segundo as quais, Stalin estaria doente. Encontrei na rua um comuna. Fiz o comentário: - "O velho está mal, hein?" O outro, que estava acompanhado da mulher, deu urros de indignação. O casal achava que Stalin não ficava doente, nem velho, e estava acima da morte, do tempo, de tudo. No meu espanto, perguntei: - "Mas vocês acham que Stalin não tem resfriado, não se constipa?" Os dois, enjoados do meu reacionarismo, confirmaram: - "Exatamente." Portanto, não admira, repito, que Mao Tsé-tung governe depois de morto. Mas essa eternidade não o impede de ser um dos maiores criminosos de todos os tempos. Hoje, Nero não passa de um afetuoso nome de cachorro. "Incendiou Roma", dirão. Mas tal incêndio fez um número de vítimas pouco maior do que, aqui, um desastre de ônibus.
E, no entanto, quando se tratou da admissão da China Vermelha, houve passeatas medonhas nos Estados Unidos. As Bochechas de Mao Tsé-tung estavam em todos os cartazes. No Rio, dizia-me um jovem cineasta: - "O maior homem do mundo." Pensemos, então, no que a China teve que pagar, em vidas humanas, ao velho tirano. Quem o diz não sou eu, mas o Time e, como o Time, uma comissão de senadores americanos, incumbida de apurar o custo humano da experiência socialista na China.
Passo a palavra aos números. Eis a estimativa feita (Os senadores e Time advertem que são cálculos feitos muito por baixo.) Vejamos: - Três milhões e quatrocentos mil mortos. Digo mortos, porque não estão incluídos os feridos, os mutilados, etc., etc. Alguns milhões de proprietários de terras, durante o período de 1942 a 1949. O chamado Grande Pulo Para Frente, ou seja, a Revolução Cultural, custou a vida de quinhentos mil chineses. Um milhão para suprimir a minoridade do Tibete. Vinte e cinco milhões em campos de trabalhos forçados. Trinta milhões, em expurgos políticos, na campanha de 49 para 58. Total da estimativa, repito, que exclui feridos mutilados, desaparecidos: - 63.784.000 chineses.
Alguém poderá objetar: - "Mas quem diz isso são os Estados Unidos." Por isso mesmo, trata-se de uma estimativa da maior benignidade. Nós sabemos que os Estados Unidos só exageram quando se trata dos próprios defeitos. São, em tal caso, implacáveis. Mas se é a Rússia ou a China, os jornais de lá, as agências telegráficas fazem a mais furiosa e deslavada promoção do inimigo.
E, além disso, convém notar que o próprio Mao Tsé-tung declarou que, para fazer a reforma agrária, matou apenas oitocentos mil chineses. Convém notar que a lúgubre estatística acima só leva em conta as execuções em massa. Vamos admitir que é algo inédito na História Universal: - 63.784.000 defuntos.
Aí está o óbvio ululante. Mao Tsé-tung matou como ninguém, mais do que o próprio Stalin. Hitler assassinou muito menos. Dirá algum socialista: - "Num país de oitocentos milhões de habitantes, o que são os sententa milhões que o velho Mao executou?" Cabe então a pergunta: - e não se vê o óbvio?
Exatamente: - não se vê. Lá, na China, está ele, o assassino. É o óbvio, com bochechas de máscara e barriga insubmersível. Houve um momento em que o Dr. Alceu, num lampejo de lucidez, esbravejou contra o estupro de freiras, na China Vermelha. O mestre chegou a dizer: - "É de fremir." Não só fremiu, como ainda lhe acrescentou um ponto de exclamação, com reticências. Na ocasião, imaginei: - "Até que enfim, o Dr. Alceu, que não enxerga óbvio nenhum, viu este." Ilusão minha, porque, em seguida, o mestre descobriu a marcha irreversível para o Socialismo. É como se ele dissesse: - "Marcha irreversível para a matança de mais de sessenta e tal milhões de chineses, marcha irreversível para o estupro de novas freiras", etc., etc.
E a Revolução Cultural é tão analfabeta que não sabe nem que o homem já desceu na Lua. O curioso é que Nixon foi ver Mao Tsé-tung. Será que o apresentaram a um defunto? Eis, então, o nosso Nixon a decidir, com um cadáver, a sorte do mundo. Na saída, talvez tenha perguntado: - "Mas por que é que ele usa algodão nas narinas?"
Publicado em O Globo, 8/11/1972.
(RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2008, pp. 140-142)
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