domingo, 25 de outubro de 2009

O HOMEM DAS CAVERNAS


Novelas e jornais nos falam frequentemente de um personagem popular chamado cavernícola, isto é, o homem das cavernas. Tem se tornado muitíssimo nosso familiar tanto no seu aspecto público como no privado. Fala-se mui a sério da sua psicologia nas novelas psicológicas e na medicina desse mesmo gênero. Parece, segundo todas as minhas leituras, que o homem das cavernas passava a vida surrando a sua mulher, em particular, e, em geral, a todas as mulheres que lhe chegavam ao alcance.
Até agora, não me pude convencer da verdade desse asserto. Não se em notícia de que jornal primitivo ou processo de divórcio prehistórico se funda. Tão pouco acerto em achar a probabilidade disso, ainda considerando o facto a priori. Dizem-nos, sempre, de uma maneira gratuita, sem explicação nem autoridade, que o homem primitivo fazia a côrte à sua mulher dando-lhe pauladas na cabeça.
É um pouco estranho, não resta dúvida, que aquelas damas insistissem na necessidade de apanhar antes de se entregarem ao homem. Não compreenderei nunca em como sendo o homem tão rude era a mulher tão sagaz.
Concedamos que o homem primitivo fosse uma besta. Porém, nada nos induz a crer que fosse ele mais besta do que as próprias bestas. E é bem certo que o amor entre as girafas e os românticos idílios entre os hipopótamos decorriam sem necessidade daqueles cavalheiros recorrerem a tais processos de carícias.
Mas, o mais curioso é isto: - que enquanto dez mil línguas, mais ou menos científicas e literárias, se ocupam desse pobre homem, no seu aspecto feroz, esquecem ou desdenham o unico aspecto em que ele nos aparece como criatura sensível e digna de estimação. Realmente, têm-se interessado por tudo que se refere ao homem das cavernas, menos pelo que ele fez nessas cavernas. E, entretanto, não nos faltam evidências palpáveis de que ele fez nelas alguma coisa de importante. Não é muito, como não o é quando se refere à idade prehistórica: mas, diz respeito ao verdadeiro homem das cavernas e não ao personagem literário a que se dá esse nome, acompanhado do seu inseparável porrete. O que se encontrou nas cavernas não foi esse pedaço de pau, com as cabeças amassadas das mulheres. A caverna não era, assim, uma alcova de Barba Azul, cheia de esqueletos de esposas assassinadas.
(...)
A secreta câmara rochosa, iluminada depois de inumeráveis anos, mostrou em suas paredes grandes desenhos e pinturas, feitos com argilas de diferentes cores. Eram desenhos e pinturas realizados, não só por um homem, senão por um artista. Com todas as limitações impostas pela época, aqueles artistas primitivos demonstravam um grande amor pela linha curva ondulante, amor que se reconhecerá, imediatamente, qualquer pessoa que saiba ou intente desenhar. Aqueles desenhos demonstravam o gênio experimental e aventureiro do artista, o espírito de quem não evita senão procura a dificuldade. Sobretudo, no caso daquele cervo pintado com a cabeça voltada para a anca, numa atitude que frequentemente supreendemos nos cavalos, e que muitos desenhistas de animais só reproduzem com dificuldades. Uma multidão de detalhes semelhantes denotam o interesse e, sem dúvida, o prazer com que o artista observou os animais, não só como artista, mas também como naturalista. Isto é: como naturalista verdadeiramente natural.


Não será necessário indicar, senão de passagem, que nada, nessa caverna, sugere a atmosfera pessimista da caverna, segundo as narrações em voga.
Certamente que não é ideal de um caráter não humano passar o tempo pintando animaizinhos nas paredes. Quando novelistas, pedagogos e psicólogos falam do troglodita, não podem concebê-lo em relação com o que existe, realmente, em suas cavernas. Quando o novelista escreve: "Saltavam chispas no cérebro de Dagmar Doubledick, o qual sentia despertar em si o homem das cavernas", o leitor sofreria uma grande desilusão se soubesse que nas cavernas nada mais existe do que inofensivos desenhos de animais. Quando o psicoanalista escreve a um parente dizendo que "os instintos adormecidos do homem das cavernas podem levá-lo a um ato de violência", não se refere ao instinto de pintar à aquarela nem de desenhar com simplicidade, diretamente do natural, cabeças de gado pastando mansamente.
Entretanto, sabemos, positivamente, que o troglodita fazia estas coisas inocentes, e, em troca, não temos a menor prova de que realizasse as ferocidades de que se nos fala. Em outros termos: o homem das cavernas se nos apresenta frequentemente como um simples mito, ou melhor, como uma vacuidade, porque o mito é, ao menos, a representação imaginativa de uma verdade.
Em resumo: tudo quanto se diz da brutalidade do homem das cavernas não é mais do que pura confusão, que não tem apoio em nenhuma evidência científica, e que só serve, de certo modo, para desculpar o moderno espírito de anarquia. O cavalheiro que necessite castigar a uma mulher, que o faça sem deshonrar o homem das cavernas, de quem sabemos, apenas, coisa muito diferente - que pintava coisas muito agradaveis nas paredes.
(...) Nada se opõe a que o artista tivesse outra feição característica além da de ser artista. O homem primitivo bem podia se comprazer tanto em surrar as mulheres como em pintar animais. O único que podemos afirmar é que os desenhos falam de seu caráter como artista e não como carrasco de mulheres. É possível que terminando de dar uma tunda em sua mãe ou na sua esposa lhe fosse agradável recrear-se, no murmúrio de um arroio e na contemplação de um cervo que bebia... Estas coisas não são impossíveis, mas, sim, improváveis. (...)


E por que não encontra entre os animais o menor indício de uma arte embrionária? É a lição simples, muito simples que nos ensina a caverna com suas paredes pintadas; tão simples, que dá trabalho compreende-la. - Que o homem se diferencia dos animais pela espécie e não por uma graduação. - E a prova está aqui: - todo mundo acha possível e natural que um homem pinte a imagem de um macaco, ao passo que tomaria por uma burla, por uma brincadeira a afirmativa de que o macaco mais inteligente da creação houvesse logrado pintar a imagem de um homem.
(CHESTERTON, G. K. O homem eterno. pp. 26-33)

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