sábado, 7 de novembro de 2009

O CONVITE DA MARXILENA


Conheço a história da filosofia não por ouvir falar, mas pela leitura das fontes. E fiquei espantado quando li um dos manuais que aparentemente é o mais usado no ensino médio.

Trata-se do texto Convite à Filosofia (São Paulo : Ática, 1995) de uma das mas conhecidas figuras da academia filosófica brasileira, Marilena Chaui. O manual é um eivado de afirmações, umas inexatas, outras falsas, muitas completamente descontextualizadas e outras francamente ridículas. Na página 12, por exemplo, se diz que Sócrates “afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: ‘Só sei que nada sei’”. Sócrates jamais fez semelhante afirmação. E a autora não diz as circunstâncias em que a frase “só sei que nada sei” foi dita. Mas peço ao leitor atenção: uma coisa é afirmar ‘a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer só sei que nada sei’ — nunca proferida por Sócrates — e outra completamente diferente dizer apenas ‘só sei que nada sei’. Isto último, sim, foi dito por Sócrates — mas perceba-se que nada se diz sobre ser a primeira e fundamental verdade filosófica. A autora não diz o lugar em que podemos encontrá-la. A afirmação se encontra nas primeiras páginas da Apologia de Sócrates, escrita pelo seu discípulo Platão, e não deixa lugar a dúvidas sobre o que significa. Sócrates afirma aí que um amigo, Carefon, perguntou ao oráculo de Delfos se havia alguém mais sábio que Sócrates. A resposta foi que “ninguém é mais sábio que Sócrates”. Este conta que ficou perplexo ao saber o que o oráculo tinha dito porque não se considerava sábio. Ora, por outro lado, o deus não podia estar mentindo ao fazer semelhante afirmação. Sócrates, então, se viu na necessidade de interpretar o que o oráculo dizia e chegou à conclusão de que, à diferença de muitos que diziam saber muitas coisas que no fundo não sabiam, ele, Sócrates, era ciente da sua ignorância. Sua sabedoria, portanto, consistia em reconhecer que nada sabia. Era isto que o tornava mais sábio do que os outros. Este é contexto da expressão ‘só ei que nada sei’ e nada há no texto de Platão que indique que Sócrates tenha feito a outra afirmação: “a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer [sic] ‘eu sei que nada sei’”.


Fiquei surpreso, contudo, quando no final da Introdução li: “O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?”! Se partimos do suposto que os ensinamentos filosóficos são feitos pelos filósofos, é de se imaginar que essas perguntas tenham sido feitas por algum filósofo antigo. Como, segundo a autora, tais perguntas formam parte “do primeiro ensinamento filosófico”, é óbvio que os primeiros filósofos devam ter sido os que as fizeram. Mas é claro que não há nada nos primeiros filósofos (Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes, Heráclito ou Parmênides) que indique que eles tivessem tais preocupações utilitárias ou proposto algo parecido com o utilitarismo. “Qual é o princípio de todas as coisas” — que é a pergunta dos três primeiros filósofos gregos — não tem absolutamente nenhuma relação com preocupações utilitárias. A pergunta, aliás, está mais para o pragmaticamente inútil do que para o útil. Mas, note-se, como poderíamos relacionar “a primeira e fundamental verdade filosófica”, que é, segundo a autora, “eu sei que nada sei”, com o “primeiro ensinamento filosófico” que consistiria em “perguntar” “o que é útil”, “para que e para quem algo é útil” etc.? É óbvio que o primeiro ensinamento filosófico deve estar relacionado à primeira e fundamental verdade filosófica. Que relaciona o problema da utilidade com a douta ignorância de Sócrates? Nada, naturalmente. E, por último, por que nem o “primeiro ensinamento filosófico” nem a “primeira e fundamental verdade filosófica” se encontram nos fragmentos deixados pelos filósofos pré-socráticos, isto é, pelos verdadeiros primeiros filósofos? Grande mistério.

Gonçalo Armijos Palacios
Filósofo, professor da Universidade Federal de Goiás.

Opção (Goiânia), 4 nov. 2001

Fonte: http://www.olavodecarvalho.org/convidados/palacios.htm

Nenhum comentário:

Quem sou eu

Minha foto
Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução