sexta-feira, 6 de novembro de 2009

CENTRAL DO BRASIL


Não, a alma de Dora não é o núcleo do enredo e a transformação dela não é a essência da trama. Essencial é a mudança da condição objetiva, social e pessoal do menino Josué à medida que o desenrolar dos acontecimentos o afasta da grande cidade litorânea e o conduz de volta às suas raízes no coração do Brasil, onde ele recebe de volta a condição humana que a maldade do meio urbano lhe havia negado.

O que se transforma não é a alma dos personagens individuais: é a condição social e moral que os cerca, a qual muda junto com a paisagem, à medida que a câmera os acompanha da periferia ao centro.

A grande cidade surge aí como o cenário do mal, um mundo condenado onde a busca do dinheiro leva a extremos de crueldade e a miséria é o penúltimo estágio de uma jornada descendente em direção ao nada. É o Brasil moderno, decerto, mas é uma modernidade estúpida, desumana e sem futuro. À medida que se deslocam para o interior, Josué encontra um Brasil antigo, primitivo, mas cheio de humanidade e promessas de futuro. Na grande cidade, seus irmãos Moisés e Isaías teriam se perdido na voragem do banditismo, terminariam baleados nas ruas. No sertão, conseguem erguer suas cabeças e conquistar um princípio de vida decente.

O Brasil progressista e dinâmico da grande cidade é o vasto cemitério das esperanças humanas. O Brasil arcaico e rude do sertão é o depósito intocado das virtudes populares e daquela religiosidade simples e devota que, a uma certa altura da história, produz milagres e floresce num buquê de sorrisos esperançosos - um dos momentos mais belos do filme de Walter Salles.

A cidade do diabo e o sertão de Deus - não há como evitar o paralelo com o grande clássico do conservadorismo na literatura de língua portuguesa, o romance A cidade e as serras, de J. M. Eça de Queirós. Tal como o rico Jacinto do romance, o menino pobre e a solteirona empobrecida de Central do Brasil empreendem uma jornada em direção ao centro, a qual, se não os leva aos céus, os devolve, ao menos, do inferno a um mundo normal e são onde ainda pode brilhar um sorriso.

(CARVALHO, Olavo de. A dialética simbólica: estudos reunidos. São Paulo: É Realizações, 2007, pp. 377-378)

Nenhum comentário:

Quem sou eu

Minha foto
Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução