
Conta-se que num bispo de vida santa tinha tanta veneração pelo bem-aventurado André que antes de começar qualquer coisa encomendava-se a ele, dizendo "Em honra de Deus e do beato André". Ora, enciumado desse santo, depois de ter empregado todo tipo de ardil para seduzi-lo, o antigo inimigo assumiu a forma de uma mulher maravilhosamente bela. Ela foi ao palácio do bispo a pretexto de querer se confessar a ele. Ante a ordem do bispo de levá-la a seu penitenciário, que tinha poderes para ouvi-la, ela respondeu que somente ao bispo revelaria os segredos de sua consciência.
Comovido, o prelado mando-a entrar: "Eu imploro, senhor", disse a ele:
tenha piedade de mim, porque apesar de jovem e criada nas delícias desde a infância, sendo de estirpe real, como vê vim sozinha até aqui com o hábito dos peregrinos. Como o rei, meu pai, príncipe poderosíssimo queria me casar com um personagem importante, eu lhe respondi que tinha horror ao casamento, pois consagrei para sempre minha virgindade a Cristo, e por conseguinte nunca poderia consentir em perdê-la. Intimada a obedecer às ordens dele ou a sofrer na terra diferentes suplícios, fugi em segredo, preferindo me exilar a violar a fé prometida a meu Esposo. O renome de sua santidade chegou a meus ouvidos, assim eu me refugiei sob sua proteção na esperança de encontrar junto ao senhor um lugar de repouso onde eu possa gozar em segredo as doçuras da contemplação, salvar-me dos naufrágios da vida presente e fugir do barulho e das agitações do mundo.
Cheio de admiração pela nobreza da sua raça, pela beleza da sua pessoa, por seu grande fervor e pela notável elegância de suas palavras, o bispo respondeu-lhe com bondade e doçura: "Fique tranqüila, minha filha, nada tema, pois Aquele por cujo amor você desprezou com tanta coragem a si mesma, a seus pais e a seus bens, por esse sacrifício lhe concederá o máximo de graça nesta vida e a plenitude da glória na outra. Por isso eu, que sou escravo Dele, ofereço-lhe tudo que me pertence: escolha o aposento que lhe agrade, e quero que hoje jante comigo". Ela: "Ah, padre, não posso aceitar este convite, pois temo despertar alguma suspeita e macular talvez o brilho de sua reputação". O bispo: "Seremos muitos, não estaremos a sós, assim não haverá motivo para nenhum rumor maldoso".
Chegada a hora, os convivas puseram-se à mesa, o bispo e a dama frente a frente nas cabeceiras, os outros de ambos os lados. Desejoso de que nada faltasse à convidada, o bispo dedicou muita atenção a ela, olhava-a com freqüência e não deixou de admirar sua beleza. À medida que a olhava, sua alma era atingida pelo antigo inimigo, que lançava flechas envenenadas contra seu coração. O bispo já estava a ponto de ceder à tentação, já planejava dormir com aquela mulher assim que a possibilidade se apresentasse, quando de repente um peregrino bateu à porta com violência, pedindo aos berros que a abrissem. Como se recusassem a fazê-lo e como o peregrino se tornasse importuno por seus gritos e suas batidas repetidas, o bispo perguntou à mulher se ela queria receber esse peregrino. "Apresente-lhe", disse ela, "alguma questão difícil: se ele souber responder, faça-o entrar; se não for capaz, afaste-o como ignorante e como pessoa indigna de comparecer diante do bispo".
Todos aplaudiram sua proposta e o bispo perguntou aos vários convidados quem seria capaz de formular o problema. Como ninguém ousasse fazê-lo, o bispo dirigiu-se à autora da idéia: "Quem melhor poderia formular a questão senão a senhora, cuja eloqüência e sabedoria brilha mais alta que a de nós todos? Formule a questão". Concordando, ela disse: "Pergunte-lhe o que Deus fez de mais maravilhoso numa pequena coisa". O peregrino a quem um mensageiro levou a pergunta respondeu: "A variedade e a excelência da fisionomia. Entre tantos homens que existiram desde o início do mundo e que no futuro existirão, não se podem encontrar dois cujas fisionomias sejam semelhantes em todos os pontos, e no entanto Deus colocou na face humana todos os sentidos do corpo".
Ouvindo a resposta, todos exclamaram admirados: "É, de fato, uma excelente solução para a pergunta". Então a dama disse: "Faça-lhe uma segunda, mais difícil, capaz de melhor pôr sua ciência à prova: pergunte onde a terra é mais alta que o Céu". O peregrino respondeu: "No Céu empíreo, onde reside o corpo de Cristo. De fato, o corpo de Cristo, que é mais elevado do que todo o Céu, é formado por carne como a nossa, logo é feito de terra; como o corpo de Cristo é formado da terra, é terra, e como se encontra no mais alto dos céus, no empíreo, é ali que a terra é certamente mais elevada do que o Céu". O enviado trouxe a resposta do peregrino, e todos aprovaram-na, louvando sua sabedoria. Mesmo assim a mulher propôs: "Façamos uma terceira e última pergunta, mais difícil que as anteriores, e se ele responder adequadamente ficará provado que é um sujeito sábio, digno de ser recebido à mesa do bispo. Pergunte-lhe qual é a distância entre a Terra e o Céu". O peregrino respondeu ao enviado que lhe levou a questão: "Vá perguntar a quem fez a pergunta. Ele certamente sabe e poderá responder melhor do que eu, porque ele próprio mediu essa distância quando caiu do Céu no abismo; eu nunca caí do Céu e nunca medi esse espaço. Diga ao seu senhor, o bispo, que quem formula estas questões não é uma mulher como parece, mas um demônio disfarçado de mulher".
O mensageiro, assustado, repetiu essas palavras diante de todos, mas antes que terminasse de falar a falsa mulher desapareceu. O bispo entendeu então os maus pensamentos e desejos que sentira há pouco, arrependeu-se amargamente deles e pediu perdão a Deus. Logo mandou o peregrino entrar, porém não o encontraram mais apesar de procurá-lo por toda parte. O bispo convocou o povo, contou em detalhe o que sucedera e encomendou jejuns e preces para que o Senhor se dignasse a revelar quem era esse peregrino que o salvara de tão grande perigo. E naquela mesma noite foi revelado ao bispo que quem assumira a aparência de peregrino para salvá-lo tinha sido o bem-aventurado André. Isso aumentou a devoção do bispo por Santo André, a quem não cessou de dar provas de sua veneração. (VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. Tradução do latim por Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 65-68)
Comovido, o prelado mando-a entrar: "Eu imploro, senhor", disse a ele:
tenha piedade de mim, porque apesar de jovem e criada nas delícias desde a infância, sendo de estirpe real, como vê vim sozinha até aqui com o hábito dos peregrinos. Como o rei, meu pai, príncipe poderosíssimo queria me casar com um personagem importante, eu lhe respondi que tinha horror ao casamento, pois consagrei para sempre minha virgindade a Cristo, e por conseguinte nunca poderia consentir em perdê-la. Intimada a obedecer às ordens dele ou a sofrer na terra diferentes suplícios, fugi em segredo, preferindo me exilar a violar a fé prometida a meu Esposo. O renome de sua santidade chegou a meus ouvidos, assim eu me refugiei sob sua proteção na esperança de encontrar junto ao senhor um lugar de repouso onde eu possa gozar em segredo as doçuras da contemplação, salvar-me dos naufrágios da vida presente e fugir do barulho e das agitações do mundo.
Cheio de admiração pela nobreza da sua raça, pela beleza da sua pessoa, por seu grande fervor e pela notável elegância de suas palavras, o bispo respondeu-lhe com bondade e doçura: "Fique tranqüila, minha filha, nada tema, pois Aquele por cujo amor você desprezou com tanta coragem a si mesma, a seus pais e a seus bens, por esse sacrifício lhe concederá o máximo de graça nesta vida e a plenitude da glória na outra. Por isso eu, que sou escravo Dele, ofereço-lhe tudo que me pertence: escolha o aposento que lhe agrade, e quero que hoje jante comigo". Ela: "Ah, padre, não posso aceitar este convite, pois temo despertar alguma suspeita e macular talvez o brilho de sua reputação". O bispo: "Seremos muitos, não estaremos a sós, assim não haverá motivo para nenhum rumor maldoso".
Chegada a hora, os convivas puseram-se à mesa, o bispo e a dama frente a frente nas cabeceiras, os outros de ambos os lados. Desejoso de que nada faltasse à convidada, o bispo dedicou muita atenção a ela, olhava-a com freqüência e não deixou de admirar sua beleza. À medida que a olhava, sua alma era atingida pelo antigo inimigo, que lançava flechas envenenadas contra seu coração. O bispo já estava a ponto de ceder à tentação, já planejava dormir com aquela mulher assim que a possibilidade se apresentasse, quando de repente um peregrino bateu à porta com violência, pedindo aos berros que a abrissem. Como se recusassem a fazê-lo e como o peregrino se tornasse importuno por seus gritos e suas batidas repetidas, o bispo perguntou à mulher se ela queria receber esse peregrino. "Apresente-lhe", disse ela, "alguma questão difícil: se ele souber responder, faça-o entrar; se não for capaz, afaste-o como ignorante e como pessoa indigna de comparecer diante do bispo".
Todos aplaudiram sua proposta e o bispo perguntou aos vários convidados quem seria capaz de formular o problema. Como ninguém ousasse fazê-lo, o bispo dirigiu-se à autora da idéia: "Quem melhor poderia formular a questão senão a senhora, cuja eloqüência e sabedoria brilha mais alta que a de nós todos? Formule a questão". Concordando, ela disse: "Pergunte-lhe o que Deus fez de mais maravilhoso numa pequena coisa". O peregrino a quem um mensageiro levou a pergunta respondeu: "A variedade e a excelência da fisionomia. Entre tantos homens que existiram desde o início do mundo e que no futuro existirão, não se podem encontrar dois cujas fisionomias sejam semelhantes em todos os pontos, e no entanto Deus colocou na face humana todos os sentidos do corpo".
Ouvindo a resposta, todos exclamaram admirados: "É, de fato, uma excelente solução para a pergunta". Então a dama disse: "Faça-lhe uma segunda, mais difícil, capaz de melhor pôr sua ciência à prova: pergunte onde a terra é mais alta que o Céu". O peregrino respondeu: "No Céu empíreo, onde reside o corpo de Cristo. De fato, o corpo de Cristo, que é mais elevado do que todo o Céu, é formado por carne como a nossa, logo é feito de terra; como o corpo de Cristo é formado da terra, é terra, e como se encontra no mais alto dos céus, no empíreo, é ali que a terra é certamente mais elevada do que o Céu". O enviado trouxe a resposta do peregrino, e todos aprovaram-na, louvando sua sabedoria. Mesmo assim a mulher propôs: "Façamos uma terceira e última pergunta, mais difícil que as anteriores, e se ele responder adequadamente ficará provado que é um sujeito sábio, digno de ser recebido à mesa do bispo. Pergunte-lhe qual é a distância entre a Terra e o Céu". O peregrino respondeu ao enviado que lhe levou a questão: "Vá perguntar a quem fez a pergunta. Ele certamente sabe e poderá responder melhor do que eu, porque ele próprio mediu essa distância quando caiu do Céu no abismo; eu nunca caí do Céu e nunca medi esse espaço. Diga ao seu senhor, o bispo, que quem formula estas questões não é uma mulher como parece, mas um demônio disfarçado de mulher".
O mensageiro, assustado, repetiu essas palavras diante de todos, mas antes que terminasse de falar a falsa mulher desapareceu. O bispo entendeu então os maus pensamentos e desejos que sentira há pouco, arrependeu-se amargamente deles e pediu perdão a Deus. Logo mandou o peregrino entrar, porém não o encontraram mais apesar de procurá-lo por toda parte. O bispo convocou o povo, contou em detalhe o que sucedera e encomendou jejuns e preces para que o Senhor se dignasse a revelar quem era esse peregrino que o salvara de tão grande perigo. E naquela mesma noite foi revelado ao bispo que quem assumira a aparência de peregrino para salvá-lo tinha sido o bem-aventurado André. Isso aumentou a devoção do bispo por Santo André, a quem não cessou de dar provas de sua veneração. (VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. Tradução do latim por Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 65-68)

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