quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Quando Nietzsche surtou


Em janeiro de 1889, poucas semanas depois da publicação do último panfleto, já neurótico, "Contra Wagner", encontra-se em Turim. Certo dia, passeando pelas ruas da cidade, depara-se com uma cena banal que, para qualquer outro homem, não teria qualquer significado, nem despertaria a atenção: um carcamano está a fustigar um jumento. Nietzsche assiste em silêncio. Súbito, é dominado por um espasmo de violenta emoção. Um ímpeto de misericórdia no apóstolo do furor dionisíaco. Um grito lancinante de caridade por parte do ateísta fanático que, um ano antes, chamara Cristo de "idiota", o Cristianismo de "subterfúgio de escravo". Uma Revolução na estrada de Damasco do filósofo que declarara guerra "ao ideal cristão; guerra à doutrina que faz da beatitude e da salvação o objetivo da vida; guerra à supremacia dos pobres de espírito, dos corações puros, dos sofredores, dos fracassados"... Um sentimento invencível de compaixão pelo mais humilde dos animais no blasfemador contumaz que escrevera: "Chamo o Cristianismo a grande praga, a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança para o qual nada é suficientemente venenoso, clandestino, subterrâneo e insignificante. Chamo o Cristianismo a grande mancha imortal da Humanidade."

Aos prantos, atira-se Nietzsche ao pescoço do animal. Agarra-o freneticamente. Chora de piedade pelo sofrimento da besta. Alucinado, quer socorrê-la. Cai então na calçada, desacordado.

Observado com estupor pelos assistentes casuais, é Nietzsche levado para casa onde goza ainda de alguns momentos de lucidez - de que se aproveita para escrever cartas desarvoradas. (...)

Daí por diante, durante dez anos, vegetou em estado de inconsciência, atendido pela irmã, até morrer.

(PENNA, J. O. de Meira. O elogio do burro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1980, pp. 95-96)

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